Liturgia e Reforma | 4. Culto: teologia viva [ESQUIZOFRENIA LITÚRGICA]

Guilherme Iamarino
20 min readSep 25, 2020

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Este é o terceiro bloco de textos sobre o assunto da Liturgia, nomeado por mim como Esquizofrenia Litúrgica. Estamos elaborando a justificativa de que a Reforma Protestante, em sua vasta contribuição teológica, foi crucial para uma transformação litúrgica e serve como um guia para o nosso comportamento litúrgico até os dias de hoje. Nossa discussão até aqui está pautada nos seguintes princípios:

Liturgia e Reforma | 1. Reforma Litúrgica [ESQUIZOFRENIA LITÚRGICA]

Liturgia e Reforma | 2. Os princípios de Thomas Cranmer [ESQUIZOFRENIA LITÚRGICA]

Liturgia e Reforma | 3. Liturgias examinadas [ESQUIZOFRENIA LITÚRGICA]

A seguir abordarei aspectos importantes na liturgia calviniana que colaboram para a argumentação de que o culto é a teologia viva da comunidade local. Com base em importantes reflexões acerca dos princípios confessionais que uma liturgia assertiva e comunicadora da verdade deve ter, retirando-se das guerras de adoração e colocando-se efetivamente fiel no mundo, para a pregação do evangelho, acolhimento do perdido e capacitação da Igreja.

Liturgia e confessionalidade

A compreensão da liturgia deve estabelecer fundamentos sobre a confissão teológica de cada denominação. Já foi dito dos pormenores e das diferenças encontradas em movimentos litúrgicos durante a própria Reforma Protestante. A confessionalidade, ou seja, o modo como se consolida de forma fundamental os principais pontos de cada denominação, é de extrema importância para todas as outras manifestações que cada denominação terá em campos diversos.

Quando entramos em uma igreja local e participamos de um culto estamos partilhando sobre o que aquela comunidade em específico acredita. As bases de fé, as raízes históricas e as características denominacionais são ensinadas, seja verbalmente ou na expressão corporal e artística. O culto é um retrato exato do que a própria igreja confessa ser sua hermenêutica bíblica, e principalmente é a prova viva de como ela vive as Escrituras. Se a teologia é a ortodoxia comunitária para o direcionamento da Igreja, o culto é sua primeira ortopraxia corporativa.

Dessa forma, a confissão de fé é justamente o ponto fundante da liturgia. A “teologia nasce da liturgia” (ADAM, 2013, p. 3) e irá ser estabelecida justamente pelos pontos doutrinários manifestados pela igreja local. Esse movimento duplo, em que a liturgia é guiada pela confissão, ao mesmo tempo em que produz o comportamento teológico é visto também da seguinte maneira: “podemos dizer que o culto é encontro com Deus, simplesmente. Culto é teologia viva. A relação entre teologia e liturgia é sempre muito estreita. De modo que podemos dizer: ‘Diz-me em que crês e direi como celebras.’” (Adam, 2013, p. 3)

Novamente, o culto é um atestado da lógica do lex orandi, lex credenci.

Portanto, existe sim uma relação íntima entre o saber teológico e os atos litúrgicos. Ignorar o conhecimento teológico, como muitos fazem, afirmando serem mais práticos e comportamentais, é só uma maneira de esconder uma ideia teológica que coloca em desmerecimento as raízes históricas e a confessionalidade. Ademais, ignorar a tradição teológica, ou se esvaziar de uma confissão clara, pode contribuir para a corrupção litúrgica da igreja, promovendo uma comunidade doente em sua teologia, consequentemente em suas ações litúrgicas, e no final da cadeia em suas práticas missionais, devocionais, piedosas e familiares.

As igrejas evangélicas e a teologia prosperam à medida que habitam a tradição católica conforme modificada pelos solas da Reforma num esforço pela unidade não do pragmatismo, mas do protestantismo. As igrejas evangélicas e sua teologia enfrentam dificuldades à medida que se esquecem de suas raízes próximas da Reforma e de suas raízes por excelência no evangelho. De igual modo, o protestantismo prospera à medida que é evangélico em seu compromisso com Cristo e com as Escrituras e enfrenta dificuldades à medida que busca unidade, integridade ou relevância em qualquer outro lugar que não o evangelho. (VANHOOZER, 2017, p. 280)

Como explorado por Vanhoozer (2017), as igrejas que esquecem de suas raízes estarão sempre sujeitas ao esvaziamento teológico. Como o culto é a teologia viva, a “vitrine” da confissão, será a primeira área visível em que a distorção da esquizofrenia litúrgica será percebida. A esquizofrenia litúrgica não se trata apenas de um problema no culto, mas é um sintoma de que algo maior está enraizado na própria concepção confessional.

Assim, uma confissão de fé clara tem o poder de ser o principal combatente da esquizofrenia litúrgica. A confissão praticada na liturgia ao longo da história contribuiu para que a igreja restaurasse a sua identidade. Da mesma forma, relembrar de pontos confessionais cruciais à nossa fé e prática nos farão despertar do sono profundo do consumismo, apatia e isolamento em relação ao mundo. Confessar a nossa fé publicamente claramente tem um alvo educativo, mas para além da cognição, trabalhamos o nosso coração, formando nossa identidade comunitária e direcionando nossos pés para a missão de Deus. Com isso, entende-se que “é primordial na adoração coletiva que a verdade do evangelho se torne ‘espiritualmente real’ para nós e nos renove de acordo com o seu poder”. (KELLER in CARSON (edit), 2017, p. 221).

Novamente, é importante ressaltar que a opção confessional não é exclusiva a uma única forma litúrgica. A Igreja precisa de uma multiplicidade de estéticas litúrgicas. Clamar pela confessionalidade clara não é negar a pluralidade do fenômeno litúrgico, mas antes conclamá-lo a claridade. A catolicidade, ou seja, a unidade, da igreja é algo que se deva enfatizar dentro da reflexão litúrgica confessional.

A particularidade de cada tradição protestante, portanto, não é fonte de conflito, mas serva da unidade — a unidade da verdade do evangelho. Não devemos chamar isso de cristianismo de “menor denominador/(denominação) comum”. Trata-se, antes, do cristianismo bíblico de “maior denominador católico”. (VANHOOZER, 2017, p. 286)

Portanto, esta é a chave para que um caminho litúrgico equilibrado seja traçado por cada denominação em nossa cultura. É a fundação das bases para se combater o espetáculo no lugar do culto, o controle ao invés da instrução e o sentimentalismo (ou racionalismo) ao invés da transformação real. Nesta área é inegável a contribuição do calvinismo para a possibilidade sã de cultos reverentes às Escrituras e ainda assim prontos a responder as demandas culturais. A contribuição de João Calvino para o culto, e muitas outras áreas, vai além da opção soteriológica calvinista, antes, é um serviço para todas as camadas da Igreja Cristã.

Um culto público com a confessionalidade clarificada proporcionará as bases para a verdadeira adoração comunitária que “é a chave para se forjar uma identidade forte sem separatismo e legalismo que marcam tantas ‘seitas’” (KELLER in CARSON, 2017, p. 221). Em contraste com a confissão clarificada está a liturgia contemporânea, que intenciona dar uma posição escondida à confissão, deixando a claridade da mensagem e das bases de fé de volta à névoa do santos dos santos. Precisamos refletir se nossas opções atuais de comunicação do Evangelho não tem contribuído mais para esconder o que cremos de fato, tentando agradar uma sociedade hostil com a mensagem da Cruz, ou se iremos nos colocar debaixo da graça efetivamente libertadora ao dobrarmos os joelhos ao Único que é digno de receber a honra e a glória, força e o poder.

A solução para combater a esquizofrenia litúrgica não é de tratar das coisas mais antigas a despeito das novidades modernas na comunicação. Antes, é simplesmente não temer a tradição da Igreja de Cristo ao longo de sua história e continuar afirmando as mesmas bases lançadas pelos apóstolos, mesmo modernizando a comunicação da igreja e trazendo as novidades culturais próprias de cada tempo.

As liturgias do nosso tempo

Há um contraste claro entre as opções mais clássicas de liturgias e as formas modernas de culto. Eu chamei anteriormente tanto as liturgias medievais quando as reformadas de liturgias clássicas. As formas litúrgicas modernas, provenientes das igrejas e manifestações litúrgicas posteriores ao século XIX, que estão presentes em igrejas emergentes e contemporâneas, serão chamadas de liturgias contemporâneas. Eu crio essa comparação agora para percebermos que, mesmo nas novidades, as atividades contemporâneas na igreja se basearão em um ou mais fatores das liturgias clássicas.

Essa comparação é necessária não apenas para uma justaposição entre as formas litúrgicas, mas para compreensão dos caminhos litúrgicos optados pelas igrejas atuais. A intenção não é desvalorizar uma em detrimento da outra, mas sim, entender tanto os elementos que surgiram e/ou foram retirados conforme o desenvolvimento da igreja. É uma comparação simples, não exaustiva, mas suficiente para estabelecer o cerne do paradigma apresentado.

Não terei tempo de elaborar uma linha histórica precisa e destilada completamente, própria para cada denominação e novo movimento litúrgico. Infelizmente, trabalharei com uma generalização. No entanto, ao mesmo tempo em que serei contundente a respeito de uma característica primariamente responsável pela esquizofrenia litúrgica em nosso tempo, tenho que reconhecer que a criatividade e a manifestação inovadora na liturgia se faz necessária, como oxigenação das épocas e um certo revirar da terra para que continuemos a semear o Evangelho.

A liturgia clássica é a forma litúrgica que se ancora fundamentalmente nos aspectos estéticos e formais originais do período reformado, e até mesmo anterior. Já a liturgia moderna é a forma adaptativa, que engloba elementos de inovação. Ambas têm seus paradigmas e justificativas teológicas. Tanto uma forma litúrgica quanto a outra dividem denominações, e revelam resultados positivos e negativos.

No entanto, a tensão é exatamente entre a disparidade na confessionalidade declarada pelas igrejas locais. Quando há uma esquizofrenia entre a declaração confessional de uma igreja e sua forma de culto, consequências eclesiásticas, sociais e missionais podem ter espaço e um resultado negativo para a vida da igreja. Por vezes, o que mais se observa é, nas liturgias contemporâneas, um desejo de rompimento total com a confessionalidade histórica da Igreja.

Elaborar uma liturgia de acordo com a confessionalidade da denominação, ou da igreja local, gera uma coerência entre o realizado e o teorizado. Em harmonia, a igreja não só caminha de acordo com a sua própria identidade, revelando a sua epifania, como também contribui para que seus membros sejam melhor capacitados dentro de suas circunstâncias denominacionais. Costuma-se dizer muito mal de cultos Frankenstein, que são um apanhado de diferentes confessionalidades, épocas. Um culto feito para “agradar” a toda a comunidade, mas que falha em comunicar o verdadeiro evangelho, e, principalmente em caracterizar a Igreja unida através da história, seja na inovação ou na tradição.

Dessa forma, apoiada nas formas de liturgia zuinglianas, tem-se a liturgia contemporânea. Sua principal característica é a mesma justificativa dos zuinglinanos: simplicidade e dinamismo. O culto deve torna rápido, desprovido de sacramentos demasiadamente misteriosos ao público, na intenção de tornar a comunicação da Palavra mais intencional, compreensiva e atraente.

Se observarmos cultos em igrejas contemporâneas e que buscam este tipo de culto dinâmico, rápido e inserido na comunicação cultural, teremos uma melhor percepção do argumento anterior. A ordem de culto é simples, dividida em apenas três porções. A primeira é uma saudação seguida de canções, um período de cânticos alegres, culturalmente engajados e preocupados em dar a ambientação para o que vem a seguir, ou seja, a mensagem. Após os cânticos alegres, um deles “diminui” o clima, tornando-o mais reflexivo, justamente para que seja criado o cenário ideal para a reflexão na Palavra.

Entra em cena o pregador da noite, e assim, mais da metade do tempo do culto é gasto com o sermão. Esse segundo elemento se torna o “ator principal” no evento chamado de culto contemporâneo. Características mais aprofundadas sobre o sermão contemporâneo podem ser observadas em Ramos (2005), onde o autor aprofunda a questão da sensação cultural e dos elementos narrativos principais nessa chamada “idade mídia”.

O terceiro elemento da liturgia contemporânea é algo que tangencia a essência da liturgia calviniana. Após o sermão, a congregação é invocada pela primeira vez a uma resposta direta. Pode ser um cântico, um apelo, um desafio ou apenas um encorajamento. É o primeiro ponto não passivo em que a comunidade é realmente encorajada a se pronunciar. Nesse sentido, mais que nos outros momentos, a comunidade de fé é incentivada a responder ao que foi ensinado no sermão e durante a liturgia. Torna-se então um desenvolvimento direto de princípios da liturgia zuingliana. Há pequenas alterações, mas a essência ainda é a proposta litúrgica esvaziada dos cultos dinâmicos e diretos zuinglianos.

Esse exemplo “fictício” de liturgia contemporânea é presente na maioria das igrejas emergentes, batistas modernas e revitalizações tradicionais que procuram uma liturgia mais dinâmica e compacta. Cultos com tal ordem são comuns nos grandes centros metropolitanos, bem como nas igrejas com ênfases na cultura, geralmente chamadas de “igrejas missionais”.

Por conta da simplicidade, o culto tem um tempo reduzido, cerca de uma hora e trinta minutos. Há muitas vantagens, como o tempo preservado e utilizado de forma eficaz para a comunicação da Palavra. Foca-se em canções, há pouca leitura bíblica dispersa na liturgia e um longo tempo de sermão, que compreende cerca de pouco mais que um terço da liturgia toda. O restante é dividido entre os avisos principais e a chamada à oração. Não há tempo gasto com ações como levantar e sentar, esperar alguém subir até o púlpito e outras ações que tornam, na fala de muitos que questionam as tradições litúrgicas, o culto “travado” e demasiadamente longo.

É claro que há outras ênfases que podem ser vistas na liturgia contemporânea, porém não é o interesse exaustivo desse estudo tratar dos pormenores desse fenômeno litúrgico. Aqui trato apenas do fato de que o princípio das liturgias contemporâneas está fundamentado na simplicidade de culto e quebra com avanços históricos conquistados na Reforma Protestante. Há um rompimento com a compreensão calviana de culto, que pode ser uma dificuldade possível, impedindo o desenvolvimento da igreja em sua identidade, acolhimento e missão.

Entre o avanço e a tradição

Há críticos que enfurecem suas vozes falando contra a modernização do culto cristão, atacando as formas musicais modernas, as tecnologias, o sentimentalismo e o estilo de pregação. É importante filtrar e dividir bem as críticas meramente estéticas das críticas que tratam da essência e do tipo litúrgico em questão. Ao mesmo tempo, é necessária a reflexão de que propostas litúrgicas mais inseridas na cultura sofreram o desgaste do tempo conforme o comportamento líquido e instável das aspirações culturais.

Anteriormente tratei da questão que é a fonte dos nossos problemas no culto. Confundimos avanços estéticos como novos estilos musicais, uso de slides ou elementos tecnológicos no culto, modernização na arquitetura e uma variedade na forma com elementos éticos e essenciais de culto. A centralidade do Evangelho não está no estilo musical, ou na forma como os bancos estão dispostos essencialmente. Tampouco está no fato da igreja estar pintada de preto ou branco, com a dimerização das luzes ou com o pregador não estar vestindo um terno elegante.

Entretanto, cada avanço estético pode estar intimamente ligado com uma mensagem ética, ou seja, com uma pedagogia do corpo, que ensina a igreja local na direção de algum princípio e virtude. É claro que o estilo musical não é um problema essencial ao culto, mas o será quando a sua estética prejudicar a compreensão da mensagem e não possibilitar que a congregação acompanhe os cânticos e hinos. A igreja com luz dimerizada, aconchegante e inovadora não é esquizofrênica à primeira vista. Porém, a igreja terá um grande problema em mãos se essa estética ensinar à congregação uma relação consumista no culto, quando se tornam confortáveis para ir à igreja sem serem completamente vistos por conta da luz, ou qualquer outro motivo.

Em resumo, qualquer avanço estético não é essencialmente problemático, mas deve-se ter um olhar atento, cuidadoso, e principalmente pastoral para cada um dos elementos que estamos trazendo para dentro do culto cristão. Inovações e elementos comunicativos “da última moda” podem ser extremamente tentadores, mas vivemos em que as inovações estão perdendo o seu brilho rapidamente. O que hoje pode ser uma solução revolucionária para o culto, amanhã pode ser um sinal de uma igreja atrasada e retrógada, ainda mais em uma sociedade extremamente dividida e polarizada em seus elementos culturais.

Finalmente, qualquer culto de adoração coletiva, que seja estritamente contemporâneo, ficará ultrapassado muito rapidamente. Além disso, ele será necessariamente destinado a um nicho de mercado muito limitado. Quando Peter Wagner diz que devemos “conectar” à cultura contemporânea, a que tipo de cultura contemporânea ele se refere? Cultura branca, negra, latina, urbana, suburbana, “geração pós-guerra”, ou “geração X”? (KELLER in CARSON (edit), 2017, p. 198).

A extrema diversidade étnica dentro dos centros urbanos possibilitou, e em grande parte foi responsável, pela diversidade litúrgica atual. Há manifestações em prol de pequenas minorias, interpretações denominacionais particulares e ministérios individuais que permitiram que o culto sofresse infinitas transformações. Cada manifestação cultural propôs para si uma forma cultual que compreendesse seus anseios, suas dores e seus desafios. O princípio maior por trás da diversidade litúrgica é justamente não o da catolicidade, mas o da pluralidade. Não se intenta uma unidade na diversidade, mas uma pluralidade na individualidade.

A variação na forma litúrgica é completamente necessária. Há estilos culturais diferentes que se expressarão de formas particulares, em seus pormenores litúrgicos. A igreja local se adapta à cultura e a comunicação que tem à sua disposição. Desejar um centro litúrgico focado em apenas um tipo de denominacionalismo litúrgico é agir contra a própria diversidade litúrgica encontrada no período da Reforma Protestante.

As diferenças denominacionais não impedem a unidade da igreja; pelo contrário, elas podem ampliá-la. Elas não o fazem pela diluição de suas características denominacionais, inclusive de doutrinas específicas, mas oferecendo-as como dons proféticos a toda a igreja. (VANHOOZER, 2017, p. 287)

Assim, optar por uma forma litúrgica puramente pela estética pode ser um erro tão recorrente quanto renunciar à tradição. Tanto um caminho quanto o outro causam a esquizofrenia litúrgica, pois ela não tem a sua origem na forma contemporânea ou tradicional, mas na essência em se esquecer a razão principal do culto cristão e transformá-lo em algo que não corresponde à fé cristã.

A confusão no culto cristão é justamente por conta de se tentar tornar o culto mais dinâmico renunciando à tradição, ou mais piedoso sendo tradicionalista. Pode-se tomar como ponto de partida o propósito da pregação no culto. Segundo Ramos: “a pregação como elemento central no culto protestante deslocou-se tornando o pregador mais um animador de auditório do que um arauto da doutrina.” (2005, p. 92). No caso, tornar o pregador como o ponto central do culto cristão colocou um desequilíbrio entre a verdadeira pregação do Evangelho por meio do culto como um todo, tornando acessórios porções do culto que não deveriam ser marginalizadas. E, ao se destacar apenas um parâmetro em detrimento de outros, reduz-se a proposta litúrgica, abrindo espaço para proporções particulares de esquizofrenias. Não digo apenas no que tange à pregação, como Ramos (2005) o faz em sua tese sobre a pregação na idade mídia. Há expressões litúrgicas que esquecem completamente da pregação e focam na experiência musical, por exemplo. Ambas, ao apontarem e destacarem elementos particulares da liturgia cristã, realizam o mesmo modo de esquizofrenia.

O desenvolvimento tecnológico contribui em última instância para as reformulações litúrgicas diversas. Não vou conseguir tratar profundamente sobre a liturgia televisiva ou sobre o tele-evangelismo, mas é necessário ressaltar que há uma certa influência no tipo de comunicação e valores fundamentais de elementos centrais agora trocados.

A televisão tem sido usada, ainda que de maneira precária e amadora, pelos mais diferentes grupos religiosos para transmitir cultos ou missas, doutrinações e catequeses, testemunhos e entrevistas — tudo regado a muita música. (RAMOS, 2005, p. 91)

Em função disso, a posição de alguns sacramentos, bem como o modelo de comunicação e estética sofrem alterações nas igreja nacionais. A forma como cultuamos foi transformada por esses e muitos outros fatores. O culto dinâmico se torna mais parecido com um programa de auditório ou uma propaganda televisiva do que com a sua concepção confessional de origem. Não há uma denominação tradicional sequer que esteja isenta de pequenas transformações que envolvem desde a posição na liturgia, e por vezes a extinção, de elementos sacramentais, até mesmo a alteração na arquitetura do local de culto público. Estudiosos como White (2016), Ramos (2005), Carson (edit) (2017) e Smith (2017) tratarão do mesmo tema com o mesmo teor. Elementos variados como posição dos móveis, pintura, arquitetura, ordem litúrgica, música, comunicação, imagens e ritos tem sido influenciados pela cultura de comunicação observada em outras camadas da comunicação do espetáculo.

Finalmente, não se pode ignorar a transformação espacial dos lugares de culto levados a efeito sob a influência do espetáculo: a remodelação dos tradicionais templos é para se parecerem mais com casas de show do que com santuários. Não raro, para se estabelecerem, grupos religiosos preferem, em lugar de construir templos, adquirir velhas casas de espetáculo, como teatros e salas de cinema. Como outros autores já haviam observado, a reforma arquitetônica promovida pela religião espetacular transformou em palco o espaço outrora reservado para o velho púlpito, que, por sua vez, ocupara o lugar do altar, em função da ênfase racionalista dos reformadores. (RAMOS, 2005, p. 179)

Dessa forma, o fenômeno moderno nessas áreas discutidas tem sua influência sob a manifestação pública da fé, a saber, o culto. É claro que seria leviano afirmar somente pontos negativos acerca das liturgias modernas, visto que muitos fatores positivos, inclusive o uso da tecnologia da comunicação, tem contribuído para o bom ensino da Palavra, a manifestação da Igreja no mundo e para o cuidado de diversas pessoas. Por conta de avanços tecnológicos que transformaram a nossa liturgia tradicional podemos levar a narrativa da Redenção para além dos muros físicos da igreja local.

Portanto, a esquizofrenia é justamente a confusão entre a confessionalidade histórica e os novos paradigmas contemporâneos. É justamente quando o ponto do equilíbrio sugerido por Cranmer não é levado em conta. Um culto esquizofrênico é aquele que já não é mais cristão, mesmo que em seu discurso o afirme, mesmo que em suas canções se proclame à Deus e que a própria Escritura seja lida e pregada. A esquizofrenia litúrgica é percebida quando o palco é mais importante que a cruz, quando a cultura é mais forte que a Palavra e quando o comércio é mais relevante que o serviço.

Princípios calvinianos para a liturgia contemporânea

Tanto na forma litúrgica zuingliana quanto na medieval há o mesmo problema. A não-participação da comunidade, seja no rito litúrgico, seja na proclamação e no ensino, contribui para que esse paradigma do culto se afaste das ordenanças bíblicas. O culto deve ser plural, corporativo, compreensível, missionário. Se alguém frequenta um culto e não se entender o que acontece, ou senta-se como em um auditório, sem participação, este já não é um fiel que é colocado como parte do povo Deus, é apenas um expectador, colocado na posição de um infiel, ímpio e pagão, ou seja, alguém que assiste o que está acontecendo no culto.

No culto cristão os expectadores são apenas aqueles que estão tomando o conhecimento da obra que Deus está realizando no mundo. Os participantes adoram, chamados por Deus ao louvor da Sua glória, como o apóstolo Paulo elabora na sua introdução aos Efésios. Se nossos avanços tecnológicos ou nossas ações criativas fazem a nossa comunidade assentar-se sem participação, estamos agindo contra o conselho do Espírito e atentando contra uma ordenança da Palavra de Deus. Se em nossos cultos a história é idolatrada a despeito do Evangelho atemporal, colocamos nossa congregação nas cadeiras que levam a uma admiração apática, sem envolvimento com a narrativa dinâmica do Reino de Deus.

As igrejas tradicionais correm o risco de esquizofrenia. Normalmente só se atenta para gama neopentecostal, de pregadores televisivos e igrejas que são centradas na teologia da prosperidade. Olhar para a igreja histórica e observar sua forma litúrgica pode revelar que mesmo as igrejas antigas e tradicionalmente reformadas também estão sujeitas à confusão litúrgica. Pois pode ser que o papel central do culto esteja mais centrado em uma figura clerical do que na ação de Deus e na resposta da comunidade. A narrativa contada pode não ser o evangelho de Cristo, mas a comercialização da fé, ou ainda secularização de valores. A igreja pode não ser mais o corpo de Cristo, mas uma audiência que observa atentamente artistas, coachs, poderosos gurus e até mesmo nobres escolásticos.

A adoração que não está fundamentada em qualquer tradição histórica particular, muitas vezes não observa a distância mínima necessária para criticar e evitar os excessos e elementos distorcidos pecaminosos da acessibilidade e franqueza de uma cultura contemporânea particular. Por exemplo, como podemos aproveitar a acessibilidade e a franqueza da cultura contemporânea ocidental, deixando de fora o seu individualismo e psicologização de problemas morais? (KELLER in CARSON (edit), 2017, p.199)

Finalmente, o risco final da esquizofrenia não habita essencialmente na estética litúrgica, mas sim em sua proposta final, ou seja, na sua essência. Calvino atentou para uma aplicação clara da maior essência da adoração cristã, e assim baseou sua forma litúrgica. O reformador procurou a confessionalidade cristã como termo balizador para a forma de culto. Resta às igrejas tradicionais refletir o papel da confessionalidade no culto e o seu papel como balizador litúrgico e eclesiológico, bem como às igrejas contemporâneas um olhar cuidadoso para a essência histórica da Igreja, para que a verdadeira liberdade de culto seja preservada.

Precisamos transcender o discurso reducionista acerca do culto cristão. Deixar os gostos pessoais de lado, afastarmos dos movimentos mais populares para enxergarmos melhor seus pontos fortes e suas fraquezas. Por vezes nosso pragmatismo pode enterrar a próxima geração. Ou nossa idolatria temporal está calando a voz da geração atual. O fenômeno litúrgico é de uma manutenção constante e urgente. Afinal, é através dele que a igreja local prova sua teologia a seu entorno. O culto é teologia viva.

Próximos passos

Diante de toda a discussão até aqui, eu termino a sequência proposta. Foi uma jornada intensa, de muitas revisões e de muitos esclarecimentos. Ainda há muito a trilhar, é claro. Neste caminho sei que há outros que estão propondo um caminho litúrgico equilibrado para a igreja cristã nacional. Em seus diferentes aspectos e recortes, nas denominações que fazem parte, a atenção à temática litúrgica está fugindo do campo meramente estético e encontrando solidez e proposições mais amadurecidas. Precisamos parar de discutir qual estilo de música é apropriado ao culto e entender realmente quais os princípios basilares do canto congregacional. Se os fundamentos estivessem bem lançados, dilemas como a iluminação do culto, transmissão online, estilo de música e investimento financeiro não iriam nos polarizar e causar discussões interminavelmente enraizadas na opinião pessoal.

Ainda tenho apontamentos específicos que pretendo mesclar com os capítulos aqui compartilhados de forma impressa apenas. Talvez um ou outro encontre abrigo nos caminhos virtuais, pela necessidade ou pela insistência do Espírito. Há apontamentos possíveis sobre o envolvimento da música no culto, incursão de músicas não-confessionais na liturgia, bem como o dilema de muitas igrejas em contratar alguém especializado na liturgia e nas artes, ou ainda o uso da profecia e seu significado. A intenção é servir a Igreja com o melhor que posso, debruçando-me de maneira responsável nas Escrituras, olhando para seu respaldo na tradição cristã através da história. Ainda há muito o que visitar na tradição sacramental e na evolução litúrgica através da história, pois temos dois milênios de caminhada.

Há uma conclusão que guardarei apenas para a versão física desses posicionamentos, que é um apontamento melhor dos caminhos litúrgicos para o pós-modernismo. Faço uma incursão e diálogo entre a filosofia de Charles Taylor, a teologia litúrgica e cultural de James K. Smith, o conceito da existência e pós-verdade com Louis Lavelle e toda a camada teológica da contribuição reformada à reflexão. A proposta é, pensar como culto cristão pode manter-se são ao olhar os desenvolvimentos ideológicos, supraexistenciais e sociológicos da humanidade, a fim de manter a simplicidade do Evangelho, a transcendência do mistério cristão e a edificação eficaz da Igreja.

Se você acompanhou até aqui, muito obrigado pela paciência e a companhia. Que Deus nos abençoe ricamente para sermos fiéis à Ele no meio de um mundo perverso, brilhando a luz de Cristo mais forte e radiante no escuro céu deste século.

Que o Espírito sempre lidere o nosso andar e até outra vez!

Referências em Liturgia e Reforma:

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