O LONGO DILEMA DO DUALISMO NA ARTE CRISTÃ [ESQUIZOFRENIA LITÚRGICA]

Guilherme Iamarino
23 min readDec 21, 2020

--

A proposta a seguir faz parte de uma porção de inserções pontuais sobre como realizamos o nosso culto. Por vezes, comportamentos litúrgicos podem demonstrar a nossa esquizofrenia na área do culto. Confusões entre entretenimento e louvor comunitário, palestras motivacionais e pregação do Evangelho, uma reunião bem acolhedora com a adoração ajuntada. Aqui, tento trazer a cada uma das coisas citadas acima o seu devido espaço e a sua devida importância, sem mais ocorrer a opressão litúrgica que por vezes vivemos, empobrecendo cada uma das ações que realizamos dentro e fora do ambiente de culto.

E precisamos, à esta altura, saber que quando discursamos sobre o culto e suas implicações entendemos que também abordamos toda a presença dos fiéis no mundo para além-culto. Abordar assuntos de esquizofrenia litúrgica não é algo exclusivista ao culto no tempo e no espaço, mas que contamina e povoa a rotina, o pensamento, o comportamento, a saber, toda a fé.

Não intento aqui emitir um julgamento terrível sobre nossas práticas. Antes, quero lançar luz sobre elas. Sei que as intenções podem ser boas, missionais e verdadeiras. No entanto, algumas confusões, se espalhadas durante os anos, serão ventos de doutrinas heréticas, esquizofrênicas e que esvaziarão nossa confessionalidade, nos afastando das casas que habitaram nossos pais.

Uma experiência litúrgica

Você entra em uma igreja. Sim, é uma igreja, por mas que se pareça com um grande galpão. Há só uma faixa etária predominante, você quase não vê “adultos”. Apenas jovens, bem arrumados, se juntando em seus pequenos grupinhos de interesse. As luzes são poucas, e não se sabe se é pela precariedade do lugar ou se é algo intencional, na desculpa de “alcançar aquela geração”. Há um grande palco, instrumentos parados ali, pessoas se movimentando para ajeitar tudo. Aquilo tudo é tão estranho a você que talvez seja necessário checar mais de uma vez o seu celular, só para confirmar que você foi a uma igreja mesmo.

A despeito da estética, um jovem saúda a todos no início. São palavras acolhedoras. Há música no melhor estilo “malhação” a ser tocado. Músicas conhecidas, algumas antigas com outra roupagem, outras daquelas internacionais que ficam sempre nas recomendações do Youtube. Todas músicas cristãs. Por mais que aquela seja uma estética estranha para você, é possível identificar ali um grupo de jovens cristãos cultuando ao Deus eterno.

Então a próxima canção vem como um soco no estomago quando você acabou de comer uma feijoada. Os acordes são bem conhecidos. A música é tensa. As palavras são reconhecíveis para você, afinal seu filho cantou essa canção na apresentação da escola no final do ano. A letra está nas propagandas do banco e da nova marca de bolsas da sua filha. Sim, é uma música popular, embalada para agradar, fácil de cantar e aparentemente muito atraente aos jovens que estão presentes ali.

Você fica um pouco confuso, pois ela foi cantada logo depois de uma sequência de canções que embalaram a temática do sacrifício de Jesus, e do quanto nós nos entregamos à Ele. Depois dessa canção, outra música que você escutou no rádio, e depois outra. A seguir, o pregador sobe, e a mensagem começa. O “culto” continua, até a canção final, onde todos vão embora. Nos cantos, você observa alguns meninos e meninas cantarolando as canções do rádio por ali, felizes de terem sua cultura contemplada naquela reunião maçante que são obrigados a irem aos domingos pelos seus pais.

Essa é uma história semifictícia. Isso já aconteceu e não aconteceu. Eu fui o liturgista. Durante várias vezes ao longo de um ano, realizei experimentos como esse. É claro, na minha loucura, ainda não tinha estudado os valores do culto cristão e a seriedade com que concatenarei os argumentos a seguir. Eu apenas era um cristão bem interessado em pregar o evangelho para a nova geração, querendo aquela faixa etária em específico experimentasse que Jesus é cool e que Ele está também nas músicas que eles cantam no rádio. Queria que as pessoas da igreja, ao cantarem “eu devia sorrir mais, abraçar meus pais…” se lembrassem do quarto mandamento. Queria que refletissem as palavras de Jesus no sermão do monte quando ouvissem “não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si”.

Mas eu estava errado.

Eu só estava perpetuando uma visão dualista entre a arte e o culto.

Estava esticando o elástico da realidade, querendo fabricar uma verdade ao invés de encontrá-la nas escrituras. Desprezando a habitação já trilhada por tantas gerações, confinei a arte e sua beleza a prisões espiritualizadas. Eu alegorizei canções que deveriam trazer verdades bíblicas em seus espaços originais. Sacrifiquei-as em um altar fabricado, na ânsia por ser relevante a uma geração que precisava de mais do Evangelho.

Perdi as contas de quantas vezes cantando em praças e evangelizando no centro da cidade eu já juntei “Além do Horizonte” do Erasmo Carlos com outras músicas falando do céu com Cristo. Realizamos apelos e mais apelos que tinham como fundo musical “Dias Melhores” do Jota Quest. Em acampamentos, no culto da fogueira, embalamos o final do sermão com o clássico refrão “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Já abri um culto sobre a vinda de Jesus com Anunciação de Alceu Valença.

Cantando em praças e com os amigos aquilo era belo, e realmente trazia luz a algo que temos pregado com afinco durante todos esses anos. Deus é Senhor sobre toda a criação e não existe um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: “É meu!” e outras frases do Abraham Kuyper que repetimos automaticamente, antes mesmo de entender todo o seu posicionamento sobre a graça comum de Deus.

Mas tentei interpolar toda essa beleza para dentro do culto cristão, acreditando que destruiria essa visão dualista entre o sagrado e o profano. Não percebi que na verdade eu estava manchando a profonação, tentando a elevar a um espaço em que não se pertencia e estava reduzindo o sagrado a mera opinião. Na ânsia de combater o dualismo, não percebi que o dualista era eu.

Não conseguindo deixar o entretenimento em seu próprio local, escravizei-o e o rendi ao culto cristão. O resultado: furtei a alegria real do culto, o prazer na Palavra de Deus, na revelação da Verdade, e também esvaziei a experimentação estética desta realidade, o proveito no que é bom, parte deste mundo, a vivência com as coisas da Terra.

Tudo isso era apenas um comportamento litúrgico que atestava a meu dualismo e pequenez de reflexão sobre o espaço de cada uma das esferas. Escrevo isso com temor, minhas mãos tremendo e meu coração palpitando. Há camadas na igreja brasileira que são tão esquizofrênicas ao ponto de cancelar automaticamente qualquer discurso deste tipo. Fundamentalista! Idólatra do princípio regulador do culto! E outras camadas que, diante de tais frases e comportamentos artísticos, farão o mesmo dizendo que firo os mesmos princípios que digo defender. Coloco-me aqui em uma posição desconfortável, mas urgentemente necessária.

Achava que tinha lido Rookmaker. Achava que estava sendo missional. O que estava fazendo era aos poucos matar a minha confessionalidade e nutrir meu preconceito com as raízes históricas da igreja e a beleza desse mundo.

Diminuía o culto, na mesma medida que reduzia canções tão belas do nosso acervo cultural brasileiro e internacional. Confinava novamente a arte à esfera da fé, algo que os teólogos de todas as épocas, sejam pais da igreja, romanos, monges, reformados e posteriores à Reforma Protestante, lutaram tanto para nos ensinar.

“Quem procura a beleza por si mesma, há de vê-la escapar-se, e destruirá sua vida e sua obra, por ter pecado contra a hierarquia dos valores; mas se não se procura senão de viver na verdade, ser verdadeiro e dizer o que é verdadeiro, e se tem a alma aberta, então, sem que a procurássemos ou esperássemos, a beleza será atingida como realização esplendorosa de uma vida casta e rica que toma forma.” (GUARDINI, 2018, p.80)

A verdade deve ser encontrada, não fabricada pelo meu coração.

Talvez as próximas palavras sejam como pancadas no coração de alguns.

Vilarejo não é uma música sobre o céu. É uma música sobre um vilarejo utópico. Não há Cristo nesse vilarejo, só uma imagem de valores morais e beleza good vibes. Não estamos cantando as frases de Jesus quando terminamos Canção da América e a letra nos leva às lágrimas com “qualquer dia amigo eu volto para te visitar”. É uma canção sobre amizade. É linda, mas não é sobre Jesus. Dias Melhores não é sobre a eternidade, é apenas sobre esperança. Anunciação também não é sobre o nascimento de Jesus. “Você não vale nada, mas eu gosto de você” apesar de soar como uma música sobre a graça de Deus, é apenas sobre alguém que consegue amar um cafajeste. Esses compositores não pensaram no Deus que se revela, tampouco em Cristo que intervém nessa realidade e nos apresenta com palavras próprias e específicas. Elas são belíssimas, e talvez nos lancem num vislumbre de desejo pela a eternidade, mas elas não são sobre isso.

A graça comum é uma dádiva de olhar a beleza nesse mundo comum e ver como Deus nos deixou pistas de si mesmo. Enxergar como ele tem preservado um mundo decadente da destruição iminente, e seu espírito ainda sustenta o mundo e o ser humano apesar de sua rebelião. No entanto, elas nunca devem tomar o lugar da graça especial, da revelação específica de Deus a nós por meio da obra clarificada de Jesus Cristo na Cruz do Calvário. Muitas canções são como janelas que nos transportam a ver um universo que pode conter a própria mensagem do Evangelho, mas o vidro é um pouco embaçado. Ao tentar ocupar o espaço da confessionalidade com essas canções e obras de arte, estamos colocando essas janelas sujas no local dos lindos vitrais dos salmos, dos evangelhos e dos hinos confessionais.

Sim, meu argumento aqui será um tanto contundente. Talvez você imaginasse o contrário, que eu defenderia o uso litúrgico de músicas onde a graça comum é visível e presente, e que podemos conversar, retirar verdades e adentrar nos templos e reuniões dos santos. Criaremos playlists com o nome de “poderia tocar na igreja”, ou realizaríamos nossos devocionais fazendo uma colagem com letras e versos das canções. Já aviso, irei decepcionar seus sentimentos de colocar Legião Urbana e Los Hermanos no culto cristão e no espaço confessional, mesmo gostando muito de ambas as bandas. Por mais que “Vencedor” esteja tocando exatamente agora no meu fone de ouvido, essas palavras nunca substituirão a Palavra da Verdade. Levo a vida devagar pra não faltar amor sim, mas não vou esconder o coração da verdade do evangelho explícito por um “evangelho subversivo”.

Essa discussão é muito mais complexa e profunda do que a discussão da parede preta ou delay na guitarra e pad no teclado. Se tem que ter instrumento, playback, VS seja qual inovação tecnológica você imaginar.

Creio que alguns já devem estar dizendo e pensando: “não faz isso amigo…”

Mas vamos lá.

Músicas seculares que poderiam ser de louvor. Será?

O que é uma música que louva a Deus? Qual o papel da canção no meio de uma liturgia? Essa reflexão tem que passar por nós antes de qualquer outra coisa. Caso contrário, será nosso próprio gosto que valerá, e não a nossa referência às Escrituras. As músicas do domingo, na reunião em que ocorre a adoração ajuntada, devem colaborar para o todo do culto, que é exatamente continuar a história da salvação, adentrando nos pormenores desta encenação proposta por Deus, ouvindo o Seu chamado e respondendo de acordo com o Seu bom conselho.

O culto cristão deve, como já disse em trechos anteriores, (a) promover a identidade da Igreja, ou seja, revelar para nós quem nós somos ao proclamarmos quem Deus é; (b) acolher e capacitar, ou seja, proclamar que cada um de nós, mesmo sendo um terrível pecador e rebelde é aceito por Deus através do sacrifício de Cristo que promove o perdão dos pecados, e a seguir podemos ser capacitados, ensinados, treinados, para amarmos como Ele ama. O culto consola e confronta, acolhe e educa; © nos lançar tanto no entendimento da dimensão do Reino de Deus e de Sua missão, da qual fazemos parte e somos enviados a cumprir, no nosso papel como filhos de Deus neste mundo perverso, mantendo a presença fiel aqui nesta Terra, até que Ele venha.

Portanto, as canções cantadas no culto cristão quando todos estamos subindo nossas vozes unidas em adoração ao Deus vivo devem estar imersas no Reino de Deus e em sua profunda graça e verdade. Sim, é necessária toda confessionalidade que as Escrituras promovem para tal. Dessa forma, não faz sentido uma canção que não colabora para a claridade do Evangelho, ou que nem sequer proclama o Evangelho em sua essência, pertença à esse momento especial e sagrado. Esse não é um espaço justo para tal canção, ou para qualquer outra atividade promovida pela nossa invenção criativa. Não adoramos a Deus à mercê da nossa própria criatividade, antes o fazemos como ele bem instruiu e ordenou que o fizéssemos. Já há um arcabouço de beleza maravilhoso e inesgotável na própria Palavra de Deus para tal.

Não vou me alongar aqui, mas basicamente estou dizendo o seguinte: Não, as músicas que gostamos de afirmar que “poderiam ser de louvor, mas não são” nunca serão de louvor, e afirmar isso é só mais um atestado de que realmente não compreendemos o que é o culto e o que é o papel da arte no culto e na cultura. É só mais uma expressão ineficiente do nosso dualismo. É tentar sacralizar o que não é sacro. É diminuir o culto cristão e o despir de sua beleza confessional, ao mesmo tempo em que se reduz a beleza poética de canções que já tem seu espaço justo e as escraviza novamente ao ambiente sacro.

É claro, que todas as músicas que citei acima são belas, riquíssimas e passíveis de até mesmo demonstrarmos o evangelho ao mundo, as utilizando como pontes de contato com a cultura. Não vou demonizar o seu uso, nem o próprio fato de que podemos e devemos neste mundo acalentar nosso coração com boas canções, inclusive com canções feitas por não cristãos e com temáticas fora das Escrituras. Isso é a graça comum de Deus, que permeia o mundo e reproduz na arte feixes luminosos de sanidade que acalmam nosso coração com essa beleza refletida.

Mas tudo o que elas serão é beleza refletida. E, no culto, o espaço da adoração é para a beleza que sai da mais pura luz, a Luz de Cristo. Confinar a arte na esfera sagrada novamente, e tornar seu uso espiritualizado é um terrível retrocesso em toda a reflexão teológica a partir da Reforma Protestante.

A Religião e a Arte têm, cada uma, sua própria esfera de vida; estas, a princípio, dificilmente podem ser distinguíveis uma da outra e portanto estão intimamente entrelaçadas, porém, com um desenvolvimento mais rico estas duas esferas necessariamente separam-se, tendo chegado a seu desenvolvimento superior, tanto a Religião quanto a Arte exigem uma existência independente, e os dois troncos, que a princípio estavam entrelaçados e pareciam pertencer a mesma planta, agora parecem nascer de uma raiz própria.” (KUYPER, 2014, p. 174)

Então não posso mais tocar Vilarejo no culto? Não posso mais citar os filmes que trazem algum ensino? Está absolutamente proibido ouvir música não “gospel”? Não é isso que estou falando.

As canções ditas “seculares”, ou melhor, canções boas que nos remetem à beleza da Criação, tem seu espaço no culto também, mas são apenas para demonstrar a graça comum, jamais para ocupar um espaço da graça especial. Por assim dizer, elas cabem ao culto da mesma forma que citamos alguma boa história na ilustração do sermão, como um adereço ilustrativo para clarificar a mensagem e possibilitar que todos compreendam. Jamais como triunfo litúrgico, jamais como as canções de louvor, jamais como a voz congregacional. Uma música que não é confessional e exatamente bíblica nunca será congregacional, por mais que em meu coração eu ache que seja. Precisamos parar de confundir esses espaços, e quebrar nossa esquizofrenia com os papéis das canções, das orações, e, inclusive, do sermão.

O canto congregacional é a voz do povo de Deus exaltando ao Deus vivo, utilizando os salmos, hinos e cânticos espirituais. As canções confessionais que trazem o drama da Bíblia, a história da redenção, e o clamor plural de uma igreja singular são mais que bem-vindos. Para ilustrar melhor, cantar uma canção não confessional como louvor a Deus, de forma congregacional, é o mesmo que realizar uma prova de história e responder as questões desenhando elefantes elaborando equações de álgebra.

Não é a mesma matéria.

É claro que existem canções maravilhosas. É claro que são boas. Só não são próprias para o culto cristão. E talvez nosso desejo de as colocar, forçosamente, no ambiente de culto, seja apenas uma manifestação do nosso coração dualista. Relutantemente dualista, eu diria. Talvez até mesmo seja uma iniciativa digna de comparação com Gaio e Tito e seu Livro Verde, citados por C. S. Lewis no “A abolição do homem”, onde a solidez da Verdade é diluída pelo sentimentalismo e o gosto próprio. Pois, o sentimento de não suportar que essas canções estejam tocando apenas em nossos fones, festas e reuniões de amigos incomode o nosso coração não porque a mensagem do Evangelho que a música reflete sem querer seja necessária no culto, que é a própria ação de Deus e resposta do homem, mas porque queremos provar um ponto, fazer valer nossa vontade, e até mesmo colocar o nosso gosto pessoal acima da necessidade da congregação. A vontade não cria a verdade, pois a verdade veio como o Logos de Deus, e ela tem uma extrema vantagem hierárquica sobre a nossa própria forma de viver.

“A verdade é verdade, porque é verdade. É-lhe de todo indiferente saber o que ela diz a vontade, ou a atitude que tomará. A vontade não é o fundamento da verdade, nem esta precisa justificar-se diante dela; a vontade sim, deve confessar sua insuficiência. A vontade não cria a verdade, encontra-a. Tem de reconhecer que é cega, que necessita da luz, da direção, da força ordenadora e estruturadora da verdade.” (GUARDINI, 2018, p. 92)

O fundamento da verdade é Cristo. O único mediador é Ele, o supremo Senhor de toda a existência. Se, por um minuto que seja, nossa vontade artística interpela o senhorio de Cristo, reduzimos a confessionalidade a mera vontade e empobrecemos inclusive a arte que estamos tentando desesperadamente destacar. A chance que temos de olhar este mundo e a realidade de maneira aumentada em Cristo é possível, se rendermos nossa vontade à Ele, nos termos dEle.

Por vezes, na ânsia em resistir ao dualismo proibitivo em relação ao consumo da arte e beleza feita por não cristãos, caímos em um dualismo avesso. A resolução não é sacralizar a beleza da arte porque outros a demonizaram. Há arte que é sacra, para o culto, e está tudo bem. Há arte que é profana, fora do culto, e também está tudo bem.

O perigoso dualismo às avessas

Uma camada dos cristãos que são artistas tem lutado contra o dualismo na arte há mais de uma década. Eu me incluo no time. Tentamos demonstrar que a arte é bela e justa, não necessita de explicações mirabolantes e ela pode ocupar esta terra sem necessariamente ser sacralizada. A arte não precisa de justificação, pois em si, quem necessita de redenção somos nós, não a nossa produção cultural. Uma música não precisa ser redimida, ou de arrependimento, quem necessita de todas essas coisas é o ser humano. É ao ser humano que é dirigida a ordo salutis e não à cultura produzida por ele.

Cristo morreu e ressuscitou para que tivéssemos vida. Não apenas para que fossemos acólitos idolatrando uma fé, mas que fôssemos mais humanos, seguindo o molde original do nosso Criador e Pai. Reduzir a arte e suas possibilidades apenas ao culto é algo grotesco, e idólatra.

“Cristo não morreu simplesmente para tornar cristãs mais pessoas. Isso não basta; sua obra é grande demais. Ele morreu para que pudéssemos ser humanos, vivendo e agindo de modo humano, como Deus originalmente nos fez para viver, em amor e liberdade. Cristo não é só o Redentor dos Cristãos, nem o guru daqueles que lhe seguem o culto, tampouco o Senhor de “nossa fé” — não devemos ter fé na fé -, mas ele veio redimir e restaurar toda a criação e ser seu supremo juiz.” (ROOKMAAKER, 2018, p. 25)

Por exemplo, as canções do Projeto Sola são uma demonstração clara do Evangelho e do que Cristo fez em minha vida. Porém, outras canções que possuo também o são, mesmo que tenham temáticas não litúrgicas e não bíblicas. Não é porque Redenção tem as palavras “graça e paz” ou explicitamente o nome de Jesus Cristo, que ela é uma arte válida. Ela é uma arte válida porque, por si só, a arte já é uma possibilidade dada por Deus, como H. R. Rookmaaker já ensinou há muito tempo. O que fazemos como banda hoje é exclusivamente para contribuir com a confessionalidade do canto público, da educação à mente e coração cristão. Como Paul S. Jones, comentando sobre a relação de Calvino com a música diz: “Calvino entendia que a melodia funcionava como um funil para a Palavra — um texto cantado com uma boa melodia poderia penetrar mais profundamente do que um texto apenas verbalmente vivenciado.” (HALL (org.), 2017, 244). Nós temos sim justificativa para a arte. No nosso caso, é exclusivamente litúrgica.

Essa é uma temática da obra de Rookmaaker que não temos entendido muito bem. Não precisamos simplesmente parar de justificar a arte, ou seja, dar um uso para ela. A arte tem sim justificativa, causa, propósito. Ela não precisa de justificação, ou seja, redenção. No entanto, todo artista revela seu uso, dá um direcionamento e quem desfruta da arte é envolvido por sua causalidade e intenções. O que Rookmaaker protesta, veementemente é que justifiquemos a arte, como um cristão é justificado, no sentido de atrelar o valor dela a uma forma expressiva única. A arte já tem seu próprio valor, e não necessita de nós para confinarmos à uma bolha de princípios e valores para que seja valiosa. Se estamos criando desculpas para experimentar a arte, já estamos querendo confiná-la em nossos espaços de causalidade, inclusive quando criamos mais e mais justificativas para que uma música não confessional ocupe nosso fone de ouvido.

Então, quando colocamos uma canção não confessional em um culto, ou quando um cristão artista compõe algo e quer mirabolantemente explicar sua arte para então justificá-la no culto, grupo de jovens, conferência ou evento religioso, já estamos sendo dualistas e aprisionando a arte novamente na esfera da fé.

Cada elemento dessa realidade tem seu espaço próprio, sua esfera de atuação. Soberania de esferas, como é chamado o conceito no neocalvinismo holandês. Artistas, precisamos nos debruçar sobre o conceito da ideia cosmonômica nos livros de Herman Dooyeweerd e no “Filosofia e Estética” de Hans Rookmaaker.

É justo que as canções tenham um espaço. Cada canção tem seu espaço nessa realidade. Toda arte é um ornamento para este mundo. Cada artista é importante, seja ele confessional ou não. Uma porção de canções como as que cantamos dominicalmente tem um uso justificado, a canção litúrgica. O canto congregacional é o espaço para onde ela foi feita, pensada, composta. E isso é completamente justo. Há categorias para isso, reflexões bíblicas e extrabíblicas para trazer luz aos temas e tipos de canções que devemos cantar quando estamos ajuntados em adoração. Há uma função muito clara. E isso é justo.

Ao mesmo tempo, há uma funcionalidade bela ao cristão que quer compor de maneira não-litúrgica. Deus habilitou seus filhos para tal, de igual modo, mesmo em canções que tenham uma confissão clarificada, que falem de maneira mais explicita da obra de Jesus e nossa missão no mundo. O mundo necessita de poetas. E os cristãos vocacionados a servir ao mundo, em nome de Deus, fiéis a Deus, não podem ser aprisionados pela Igreja. Não é porque um artista é cristão que sua arte automaticamente deva ocupar o espaço do culto cristão.

Se, ao termos poetas que conduzem as linhas de seus versos à beleza e riqueza lírica de uma maneira que se destaquem entre os poetas deste mundo, porque confiná-los às nossas paredes, playlists “gospel”, conferências e espaço de culto? Parece-me que, ao forçosamente querer que essas canções ocupem os espaços litúrgicos, estamos negligenciando a missio Dei, ou seja, não enviando esses artistas para o mundo, a fim de que abençoem as livrarias, as casas, os carros e os festivais de música. Escravizamos cada um deles para que toquem no mesmo ritmo que as canções litúrgicas, frustrando-os e negando-lhes o espaço ao qual Deus os enviou.

Esse é um dualismo às avessas. Por mais que lutamos contra ele no passado, ele ainda está lá. Tentamos capturar as canções “seculares” e confiná-las aos nossos cultos e textos cristãos descolados. Produzimos artistas que tem uma sensibilidade extrema às dores do mundo e conseguem trazer paz e a mensagem de Cristo de uma forma não litúrgica, mas geramos neles a expectativa infundada de que suas músicas entrarão no cancioneiro cristão. Nada mais errático, nada mais esquizofrênico.

Respeitar os espaços, irrigar desertos

Ao artista cristão: você não precisa compor músicas para o culto apenas. Você pode compor na direção em que está sendo chamado, na direção da angústia do coração. Se sua música for para a congregação cantar junto, ela terá seu arcabouço de parâmetros para que sirva à Igreja no canto público. Se não o for, ela pode ocupar, de maneira justa, outros lugares, sem produzir frustação em ti.

A arte produzida não precisa ser uma desconstrução da tradição, pode dar as mãos com a história e caminhar rumo a um futuro de esperança. Na ânsia de negarmos os fundamentalismos do farisaísmo tradicionalista, não precisamos também nos tornar fundamentalistas modernos. Nossa tarefa é como a dos educadores, para novamente trazer C. S. Lewis em auxílio. Não precisamos destruir florestas, antes, nosso dever é irrigar desertos.

“o objetivo do artista não é romper com a tradição, e sim recuperá-la num contexto para o qual o legado artístico pouco — ou nem sequer — se preparou. Essa história não se volta para o passado do agora; ela se debruça sobre sua realidade presente, isto é, sobre o lugar que chegamos e cuja natureza deve ser compreendida como um continuum. (SCRUTON, 2013, p. 181)

Junto o meu pedido e clamor ao de Calvin Seerveld e digo: onde estão os artistas que produzirão beleza que ocupará as listas de spotify não confessionais? Graças ao bom Deus temos alguns artistas assim hoje em dia, cristãos brasileiros que se preocupam com isso. Alguns exemplos? Midian Nascimento e seu disco “Barulho”, com maravilhosas composições dela e de Filipe da Guia, Northon Pinheiro e seu disco “Alma Nua”, João Manô, destacando-se o seu álbum “Volver”. São cristãos arraigados nas escrituras e produzindo música para o mundo, não apenas para a igreja. Eles são necessários, e nossa oração, dedicação e amor, também. Precisamos ter a coragem de lançá-los em missão, e desconfiná-los de nossos cultos. É claro que servirão à igreja, inclusive nos cultos, mas claramente são muito mais missionais que o Sola, por exemplo. Há muitos outros que também possuem músicas para ambos os ambientes, seja o culto seja a nossa casa, carro e churrasco, e isso é perfeitamente possível e justo.

Mas assim daria outro texto só para o assunto. Posso ter me esquecido de alguém e não gostaria que algum artista se visse chateado por seu nome não entrar na lista. Sei que muitos tem fama de serem melancólicos. Assim também o sou. No entanto, precisava citar pelo menos alguns, para sustentar o que tenho dito na realidade.

Para citar também internacionais como, Grey Havens, Sara Sparks, The Oh Hellos, Switchfoot e Jon Foreman, Needtobreathe, For King and Country, e muitos outros que, sendo cristãos, tem entendido esse papel do artista, músico e compositor, para serviço de Deus no mundo e não exclusivamente da igreja. Há exemplos em outras áreas da arte também como Terrence Malick que é o queridinho dos que gostam de cinema cult. E até mesmo quem faz série infantil para a Netflix como o N. D. Wilson e seu impressionantente histérico Hello Ninja.

Creio que os artistas cristãos que fazem canções confessionais já são bem conhecidos, principalmente os internacionais. Há espaço criativo para Hillsong United, Shane & Shane, Phill Wickam, We The Kingdom, Michael W. Smith, Chris Tomlin, e muitos outros. Aqui no Brasil também temos uma porção. Nós entramos no grupo com o Projeto Sola, ainda que com canção esteticamente diferente e diametralmente opostas ao popular “worship”. Outros bons amigos como CantoVerbo e o impressionante talento com as palavras precisas na hora certa, Ana Heloysa e suas belíssimas canções confessionais, profundas no ritmo alegre de Cristo, Ternoesaia com algumas músicas que eu mesmo queria ter escrito, Hipona e o rock brasileiro super reformado. Não me surpreendo quando também penso que cada um desses seria bem ouvido em círculos para fora da igreja, e há espaço para isso, pois estão bem firmados em Jesus para serem poetas à essa realidade. Juntam-se a nós também o Alê Magnani, amigo e servo dedicado a igreja, Fábio Sampaio e a igreja de perdizes, Paulo Nazareth e a igreja da vila, que já muito me ajudou em escolher músicas na igreja local, o próprio Gui Andrade, parceiro e irmão, com a equipe de música de nossa igreja IPAlpha, servindo a igreja local com a própria força da igreja local. Há ainda os irmãos queridos da Purples, Marco Telles, Eli Soares, Mauro Henrique, seja nas versões ou nas canções autorais que trazem luzes diferentes a textos bíblicos bem conhecidos, Baruk, que já é consolidado e tem um dom impressionante em servir a igreja dirigindo as canções para que todos adoremos juntos, e claro, a Banda Resgate, que foi usada por Deus no dia em que Ele me chamou. A lista poderia continuar, falando sobre todas as bandas e artistas que gostamos, e que tem servido a igreja brasileira com seus dons. Antigos, bem conhecidos, novos, nem tanto conhecidos, reformados, carismáticos, evangelicais e tradicionais. Todos eles procurando servir ao Deus vivo e a igreja brasileira. Vocês bem conhecem meus gostos pessoais por Vencedores por Cristo e cânticos antigos, também minha admiração pelo grupo Logos, a geração do Nelson Bomilcar, João Alexandre, Guilherme Kerr, e muitos outros. Destilar mais elogios à essa geração seria chover no molhado.

Todos esses, e muitos outros que talvez não tenha falado aqui, mas possuem igual valor e espaço na arte para a igreja e para o mundo, estão em seus espaços, compreendendo o chamado de Deus, bem como engajados com a verdadeira causa do Evangelho não dualista. Temos iniciativas de bandas, no cenário independente, e até mesmo coletivos, como coletivo candiero. De norte a sul neste país possuímos artistas dispostos e criativos, firmados na verdade. Com canções internacionalizadas, de mesclas culturais, ou com músicas regionais. Ambos com riqueza de talento, escritura e coração servil. Ambos servindo a igreja e sendo um pináculo fiel a Deus no mundo. Necessitamos disso, sempre diante de uma boa reflexão para que não ocupemos lugares dos quais não fomos chamados, preservando os artistas e as igrejas locais, compreendendo os espaços e incentivando a missão.

A temática da esquizofrenia litúrgica tem que passar pela música. Eu sei que demorei para escrever sobre esse assunto. Porém, não queria abordar o tema sem antes solidificar nossos conceitos sobre o culto cristão. Não gostaria que esse assunto fosse recebido com passionalidade de qualquer um dos grupos que talvez se sinta ofendido. Sejam os tradicionalistas que não querem nenhuma inovação na liturgia do século XVI e XVII, sejam os modernistas que atropelam a verdade com a paixão do próprio coração, criando termos e assuntos que não conferem com a mensagem de Cristo.

Estamos aqui a observar fractais de beleza. Olhar para os fractais da realidade nunca é algo simples, preto no branco, dualista ou automático. Esse exercício requer uma constante revisão e reflexão. Olhar e olhar de novo, pensar e pensar de novo. Ou como o professor costumava dizer: Pranteie, Ore, Pense e Trabalhe.

Há infinidades de palavras para que o assunto seja devidamente tratado e sei da minha limitação. Como o próprio mestre Jesus orou, estaremos no mundo, mas somos protegidos do Maligno. Aceitamos as palavras que Ele transmitiu, as palavras do Pai. Para que o mundo creia que o Pai enviou o Filho é que ele roga. Que estejamos firmados NEle, um conosco, um com Deus. Artistas que são cristãos, é essa verdade que precisa ser encontrada por nós, que traz luz a todos os cantos dessa realidade. Deixemos nossa imaginação voar para além das estrelas, mas a mantenhamos firmada na Verdade e não rendida à fútil vontade. Iluminemos todos os locais, trazendo ornamentos belos para cada canto, seja sagrado, seja profano. Irrigando desertos, proclamando e vivendo a Verdade de Cristo Jesus. Aqui termino com um clamor, reiterando o que diz Calvin Seerveld. Precisamos de artistas não dualistas, que entendam seus espaços. Seja na igreja local, seja no mundo. Eu sei que a vontade de muitos é ver a arte, como cristão, apenas de um lado. E quando achamos que somos missionais, corremos o risco de perpetuarmos um dualismo às avessas. Então, meu clamor final, é voltado aos artistas vocacionados por Deus em direção ao mundo, e não apenas à igreja. Digo-as também para mim.

Onde estão os bravos guerreiros, poetas fiéis que serão tão arraigados à fé que não procurarão criar espaços para si dentro de nossos muros, mas irão ao território hostil da música popular e proclamarão a mensagem lá, sem tentar ocupar um espaço confortável dentro da congregação? Onde estão os missionários musicais, leais como os tantos outros missionários que temos, corajosos o suficiente para retirar suas expectativas de serem astros da próxima conferência cristã e sim trilhar a jornada do artista nas casas de show, restaurantes e até mesmo trilhas sonoras? E o quanto que nós, que somos Igreja de Cristo, estaremos prontos para deixá-los ir, sem amarrar a cara ou revirar os olhos quando produzirem músicas que não sejam as para o culto?

Que Deus os guarde em sua poderosa mão. Até outra vez.

REFERÊNCIAS:

GUARDINI, R.; O espirito da liturgia, São Paulo, Cultor de Livros, 2018, 95p.

HALL, D.; PADGETT, M. (org); Calvino e a Cultura; São Paulo, Cultura Cristã, 2017, 336 p.

KUYPER, A.; Calvinismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2014, 208p.

ROOKMAAKER, H. R.; O dom criativo; Brasília, DF, Editora Monergismo, 2018, 216 p.

SCRUTON, R.; Beleza, São Paulo, É realizações, 2013, 231 p.

--

--