SÍNDROME DE WELLS [bananas são radioativas]

Guilherme Iamarino
9 min readDec 4, 2020

--

Precisamos continuar com a porção de discussões sobre viagem no tempo, ou melhor, sobre o próprio tempo.

Quanto tempo temos? Não muito.

Tenho certeza de que você já quis voltar no tempo. Tão certo quanto café é bom.

Acho que todos nós sabemos que há um grande fetiche em relação ao que aconteceu no passado. Creio que nem tanto com a história em si, mas com sempre a frase “o que aconteceria se…”

Você já pensou, certamente, se for como eu, que é possível que tenha dito uma grande frase se pensasse um pouco mais, ou teria ido melhor numa prova se tivesse estudado mais. Ou talvez teria aproveitado mais aquele dia, não ficasse tão preocupado ou perturbada com uma frase que o seu amigo ou amiga usou para te irritar.

Ou talvez a sua vida seria melhor se, durante aquele vídeo ao vivo, você não tivesse dito aquela frase, daquele jeito. Ou então se não tivesse postado aquela foto, ou olhado para aquele lado. Há coisas que queremos desdizer, desver e desfazer.

Vou começar desse princípio, pois é ele quem inicia um processo na mente humana a refletir sobre a possibilidade de modificar o que já aconteceu. Preciso dar um nome para isso, e assim poderemos nos referir a isso mais vezes.

Creio que vou chamar esse princípio de Síndrome de Wells, visto que, o famoso autor H. G. Wells, em seu romance “Máquina do Tempo” abordou essa ânsia por mudar o passado. Foi um dos primeiros romances de ficção científica em que o ser humano, usando de seus próprios artifícios tecnológicos, conseguiu viajar pelo espaço-tempo.

O anseio demonstrado pela Síndrome de Wells pode ser justificado por uma tríade. Descontentamento presente, arrependimento passado, ou culpa, e controle. O descontentamento pode levar a pessoa a acreditar que haveria uma época mais antiga em que talvez ele fosse mais feliz. O arrependimento ou culpa, podem o fazer querer modificar alguma coisa que aconteceu, na tentativa de corrigir o tempo. Trazer justiça a seus atos pecaminosos. Já o controle, é apenas o anseio típico do ser humano comum de querer ter o poder sobre as coisas. E, se for sobre o tempo, ou sobre o passar do tempo, melhor ainda.

Descontentamento, culpa e controle. DCC. O que não quer dizer absolutamente nada e foi uma tentativa insana de trazer uma sigla inútil. Mas, não podemos voltar no tempo aqui. Pelo menos não neste texto.

Não vou discursar ainda sobre a impossibilidade da viagem no tempo. Sabemos que as taxas de juros não permitiriam, e a tentação da pessoa se tornar rica com apostas em campeonatos esportivos seria alta. Além disso a Eternidade ainda não foi inventada e o fluxo de espaço-tempo não possui, até onde eu sei, um cientista louco o suficiente para colocar um capacitor nessa coisa.

Em outra hora podemos falar sobre paradoxos temporais, de avôs e filhos e desejos de assassinato. Sei que sempre as pessoas que gostam desse tema costumam considerar que idosos são assassinos. Talvez isso seja gerontofobia.

Mas gastarei ainda um bom tempo falando desse anseio visto na Síndrome de Wells. Então nada de Hulks inventando viagens temporais.

Vou dar um exemplo dessa síndrome de Wells, caso você não tenha lido o livro, ou ainda não tenha percebido sobre o que eu realmente estou falando. Há uma porção de coisas em minha vida que gostaria que fossem distintamente diferentes. Queria que tivesse tomado algumas decisões antes ou até mesmo depois de tê-las tomado nesta linha temporal. Desejaria não ter encontrado algumas pessoas, não queria ter deixado outras. Talvez quisesse ter conhecido certas pessoas bem antes também do que encontrei na verdade, o que facilitaria muito as coisas.

É verdade que preciso escrever a seguinte frase aqui, e quem entender entenderá.

Eu não conheço metade de vocês como gostaria; e gosto de menos da metade de vocês a metade que vocês merecem.

Outro dia falo sobre essa frase, o mês de setembro e joias preciosas lançadas no fogo.

Voltemos a falar sobre o nosso desejo de alterar a realidade viajando no tempo.

É só começarmos a olhar um pouco para nossas vidas, que o arrependimento e a culpa passada começam a tomar conta da nossa mente e fazer um bom jogo de rugby ali. Pensamentos acumulados uns nos outros, regras escusas. De repente, o universo ideal para sua plena felicidade se desfaz, e a síndrome de Wells te leva a um longo caminho de autocomiseração. Fica impossível enxergar o que é, pois a monstruosidade do que poderia ter sido já contaminou toda a esperança.

É fácil imaginar por que as pessoas querem mudar suas vidas, certo? O que talvez não seja tão óbvio é o fato delas saberem exatamente quais oportunidades temporais modificar para que se tornem felizes para sempre.

É aqui que a Síndrome de Wells tem sua primeira grande queda. É um tombo tão grande que talvez seja por isso que só funcione na ficção.

Como, exatamente, saber em qual tempo de oportunidade voltar para que eu mude certo fator em minha vida? O que garante que, se eu mudar um encontro, tudo dará certo?

Usemos a síndrome para modificar causas mais nobres, como uma guerra, por exemplo. Como saber que evitando a Guerra do Peloponeso não iríamos desencadear uma alienação geral e liberar a fúria do Egito para todo o ocidente? Como saber que impedindo Hitler de chegar ao poder algum outro lunático pior não iria começar uma regra matando alemães loiros, por exemplo?

O que garante a alteração perfeita da realidade sem mudanças ainda piores?

Como disse, a alteração do tempo de oportunidade é sempre um mistério. Só funciona na teoria e na ficção.

Em About Time, falando desse filme novamente, para variar, Tim e seu pai tem uma grande sabedoria em usar o tempo de oportunidade. Modificar o passado, para eles, é algo sério. No entanto, é algo ousado. Algo tão ousado quando sair nu pela rua ou cantar em público. Tão ousado quanto dizer o primeiro “eu te amo” ou então tomar uma decisão tão importante quanto pedir demissão.

Vou lhe dizer o porquê. Mudar o passado requer um desprendimento com o presente. Não só com o presente que deu errado, e você quer transformar, mas com o presente que você gostou. Alterar as coisas ruins nos traz a terrível consequência de alterar as coisas boas também. Pelo menos na ficção científica e nos romances leves de viagem no tempo.

É aí que mora uma coisa, talvez familiar para nós, no que consta o Eros. Isso mesmo, lembra lá daquele famoso livro do C. S. Lewis, o professor de Cambridge, tutor em Oxford?

O amor possui uma certa dose de vulnerabilidade. Entre a vulnerabilidade e o desejo de alterar o passado é que estabeleço um pequeno laço tímido entre a síndrome de wells e o comportamento do Eros. Essa relação de uma aparente conexão entre a Síndrome de Wells, usada sabiamente na ficção e o amor é que eu gostaria de explorar.

Para alterar o passado, é necessário que se compreenda que o presente mudará drasticamente. Tomemos como exemplo uma das cenas de About Time:

Tim acabou de encontrar com Mary. Mas seu amigo, ou melhor, amigo de seu pai, teve um péssimo dia. Sua peça deu errado porque um dos atores esqueceu as falhas. Tim volta no tempo, para que ajude o ator e assim permita que a peça de seu amigo seja um sucesso. Mas ao fazer isso o encontro perfeito com sua futura amada nunca acontece.

Lógico, Tim não gostaria que isso acontecesse. E assim percebe que com a possibilidade de mudar o passado, além de modificar o que deu errado algumas coisas boas também são alteradas.

Seria impressionante retratar o desespero de Tim depois disso. Creio que a maioria dos filmes mais vitimistas tratariam disso e de sua raiva com seu tio/amigo. Porém, como About Time é um filme bem good vibes, não acontece isso no roteiro.

Lógico, Tim fica decepcionado e chateado. Não compreende muito bem o que aconteceu. Mas o que vem a seguir no filme mostra uma maturidade incontestável sobre a Síndrome de Wells.

Da primeira vez ele usou o seu anseio de usar a habilidade de maneira inconsequente. Uma vez feito, não pôde modificar. Poderia ter voltado novamente no tempo, encontrado novamente Mary e deixado seu tio na mão. Poderia ter feito o que todo ser humano que se preze faria, agido de forma egoísta quando ameaçado. Pessoas não se comportam bem no caos. Mas ele não fez isso, e por isso o que ele fez faz parte da lição de hoje.

Questão de tempo nos ensinando lições do tempo.

Tim Lake buscou uma outra forma, algo que contemplasse tanto o auxílio ao seu tio, quanto o prazer que sentiu ao ver florescer a paixão pela Mary. Sim, um outro jeito. Improvisou. Diante do que aconteceu, ele não quis remoer, ou seja, voltar a ruminar o passado. Deixou para trás o que aconteceu, apesar da decepção em ter alterado o presente.

Buscou em sua memória o que sabia sobre Mary, e foi encontrá-la. Não foi o mais honesto em suas opiniões, mas precisava chamar a atenção dela. Saberia que isso teria custos e consequências, e o fez mesmo assim.

Enfim, o que posso dizer sobre isso? Talvez tudo. O passado pode ser alterado? Realmente não. Na minha cabeça talvez. No que eu faço, ao decidir não voltar a ruminar o que aconteceu e improvisar um jeito de que o que eu desejo aconteça. Ou na verdade, não ser tão apegado ao que eu desejo.

Essa atitude não é grandiosa como uma máquina do tempo, mas talvez seja precisamente a habilidade de se utilizar do Kairós de maneira sábia. O que Tim mostrou, dessa vez, foi que o passado pode ser alterado sim, para bem ou mal, mas ele pode ser corrigido, e com bom humor.

Eu amo essa parte do filme. Acho que me ensina muito sobre essas duas coisas. A Síndrome de Wells, ou seja, o anseio tremendo que temos de mudar o passado desejando uma boa vida. E o verdadeiro aproveitamento do tempo oportuno, sem necessariamente remoer o passado, mas buscar formas criativas de modificar o que nos faça mal, não se importando com as consequências nem do passado, nem do futuro.

Eu sei que podemos discursar mais sobre tudo isso. Posso voltar ao passado e deletar todo este texto e o escrever novamente. Não o farei. Ao invés disso, buscarei formas criativas de reviver tudo isso, sem agir de maneira que seja descontente, ou que me faça remoer em culpa, ou ainda pior, ressalte a minha necessidade por controle.

É preciso lembrar do Salmo 23 nessa altura da discussão. Temos um bom pastor que nos coloca em pastos verdejantes, e ele não muda o passado. Ele, soberano sobre o tempo, decide encontrar contentamento com o passado, perdoar a ofensa, remover a culpa. Não é interessante que o próprio Deus decidiu não corrigir o tempo, mas ao invés disso criativamente reconciliar consigo os seus próprios inimigos?

Se o Senhor é o nosso pastor, aquilo que não temos não precisamos desejar. Contentamento. A situação atual, por mais desconfortável que pareça, pode ser um terreno fértil para a alegria. Assim, não precisamos nos apegar à culpa, pois o que passou não pode consumir o futuro. Consequências jamais são desastrosas demais para quem descansa à sombra do onipotente. As consequências dos nossos erros só são desastrosas para quem acha que está no controle de tudo.

E é sobre isso que é exatamente a Síndrome de Wells. O desejo egoísta, cruel e possessivo de controlar o tempo. Ter o tempo todo para si é viver perdendo tempo.

É uma relação mística com o tempo, com a realidade. Como se vivêssemos no total arbítrio da nossa existência. Como se o que decidíssemos sobre o passado não fizesse milhões de átomos desaparecerem, dezenas de espécies serem extintas e uma porção de tweets maldosos criassem vida. Pensamos que nossas vãs filosofias acerca do que “deveria ter sido” são melhores opções para a realidade. Talvez o sorvete que você não tomou aquele dia e que, na sua cabeça, você deveria ter tomado, excluísse da existência um grande livro sobre barcos a remo. Ou então extinguisse uma espécie muito particular de formigas da Malásia. Ou então fizesse com que About Time nunca tivesse sido filmado.

Agora fui longe demais.

Voltarei à discussão prolixa e sem nenhum compromisso acadêmico.

Que o nosso desejo de alterar o passado não seja decorrente de nosso descontentamento, nem de nossa culpa, nem do nosso anseio por controle. Aliás, se um dia pensarmos no passado, que estejamos reconciliados com o que não aconteceu de forma ideal, para que isso não contamine a forma que vivemos no presente.

Há tempo para todas as coisas. E por mais que pensemos que Jesus Cristo atrasou em ressuscitar Lázaro, como suas irmãs assim o pensaram, ele chegou no tempo exato de provar na história seu plano de redenção. O Cristo que demora quatro dias é o Cristo que não chega nem antes, nem tarde, mas no tempo adequado, no Kairós de Deus. Verdadeiramente em contentamento, sem mais nenhuma culpa, entregue ao controle completo do Pai, o Criador de todas as coisas.

--

--